As super bactérias e a resistência antimicrobiana (RAM) representam uma grande ameaça à saúde humana em todo o mundo. Diversas publicações estimaram o efeito da resistência antimicrobiana na incidência, mortes, tempo de internamento hospitalar e custos de saúde para combinações específicas de patogénios-drogas em locais selecionados. Um estudo publicado na revista The Lancet apresenta, até ao momento, as estimativas mais abrangentes da carga de resistência antimicrobiana a nível global (204 países)!
Resistência aos antibióticos como aparece?
Os antibióticos são medicamentos capazes de matar ou inibir o crescimento de bactérias, sendo que neste caso (inibir não matar) se denominam bacteriostáticos. A sua eficácia está associada diretamente à bactéria causadora da infeção, por isso nem todos os antibióticos são adequados para o tratamento de uma mesma infeção, devendo ser utilizados apenas no combate a infeções bacterianas e com a respetiva prescrição médica.
A resistência aos antibióticos aparece quando a bactéria a eliminar se modifica como resposta ao uso continuado do mesmo medicamento.
Como exemplo posso descrever uma pessoa que tenha sido infetada com sífilis, uma infeção sexualmente transmissível (IST) causada pela bactéria Treponema pallidum e tratada com um antibiótico denominado penicilina benzatina.
Suponhamos que com este tratamento 90% das bactérias são eliminadas e que 10% sobrevivam. Entre as sobreviventes, é possível que parte delas tenha desenvolvido mecanismos de resistência à penicilina benzatina. Estas bactérias sobreviventes vão voltar a multiplicar-se e quando forem expostas de novo ao medicamento, este pode não ter a mesma eficácia, tornando mais difícil o combate à infeção.
O uso indiscriminado de antibióticos nos hospitais e outras instituições de saúde, assim como em práticas agropecuárias contribui imenso para o aumento da resistência antimicrobiana. A compra de antibióticos sem receita médica deve ser completamente abolida para evitar a automedicação inadequada e perigosa para o próprio doente e para a sociedade em geral.
Na rotina hospitalar, por exemplo, diversos procedimentos invasivos tais como a utilização de ventilação mecânica e de cateteres venosos, são portas de entrada para as bactérias, levando ao aumento das infeções hospitalares associadas a estes instrumentos, sendo por consequência intensificado o uso de antibióticos, o que promove a seleção de bactérias resistentes nos hospitais.
A ausência de sistemas de saneamento eficazes, com o lançamento de esgoto de hospitais e domicílios no meio ambiente sem o tratamento adequado, obviamente, favorece o aumento da resistência antimicrobiana. Na natureza, as bactérias entram em contato com outros microrganismos e resíduos de antibióticos, o que gera novos processos de seleção e resistência, assim como grandes alterações da nossa microbiota quando usamos antibióticos de forma errada.
Custos para a sociedade
A resistência bacteriana aumenta os custos de tratamentos, prolonga os dias de internamento dos pacientes nos hospitais e aumenta a taxa de mortalidade. À medida que os antibióticos se tornam ineficazes, o número de infeções que se tornam mais difíceis de tratar também vai aumentar.
Com a limitação e ineficácia dos tratamentos, as infeções que hoje têm um tratamento simples, podem, no futuro, causar sérios danos ao nosso organismo, pois teremos menos recursos para combatê-las.
Um dos acontecimentos mais preocupantes é que existe o uso excessivo de colistina para promoção de crescimento em animais, que demonstrou originar resistência em animais e humanos. A colistina é um dos últimos e mais importantes antibióticos de amplo espectro para a humanidade.
Estudo publicado no The Lancet
Neste estudo foram estimadas mortes e anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs) atribuíveis e associados à resistência antimicrobiana bacteriana para 23 patogénios e 88 combinações patogénio-droga em 204 países e territórios em 2019. Foram obtidos e estudados dados de revisões sistemáticas da literatura, sistemas hospitalares, sistemas de vigilância e outras fontes, abrangendo 471 milhões de registros individuais ou isolados e 7.585 anos locais de estudo.
Usaram modelagem estatística preditiva para produzir estimativas de carga de resistência antimicrobiana para todos os locais, inclusive para locais sem dados. A abordagem pode ser dividida em cinco componentes amplos:
- Número de mortes em que a infeção desempenhou um papel;
- Proporção de mortes infeciosas atribuíveis a uma determinada síndrome infeciosa;
- Proporção de mortes por síndrome infeciosa atribuíveis a um determinado patogénio;
- Percentagem de um determinado patogénio resistente a um antibiótico de interesse;
- Risco excessivo de morte ou duração de uma infeção associada a essa resistência.
Usando esses componentes, foi estimada a carga de doenças com base em dois contrafactuais:
- Mortes atribuíveis à RAM (com base num cenário alternativo em que todas as infeções resistentes a medicamentos foram substituídas por infeções sensíveis a medicamentos) e
- Mortes associadas à RAM (com base em um cenário alternativo em que todas as infeções resistentes aos medicamentos foram substituídas por nenhuma infeção).
Os intervalos de incerteza são de 95% para estimativas finais como os 25º e 975º valores ordenados em 1.000 sorteios posteriores, e os modelos foram validados de forma cruzada para validade preditiva fora da amostra. Apresentam-se estimativas finais agregadas ao nível global e regional.
Quais as bactérias mais resistentes?
Com base nos modelos estatísticos preditivos, houve uma estimativa de 4,95 milhões de mortes associadas à resistência antimicrobiana bacteriana em 2019, incluindo 1,27 milhões de mortes atribuíveis à RAM bacteriana. A nível regional, estimamos que a taxa de mortalidade em todas as idades atribuível à resistência seja mais alta na África subsaariana ocidental, com 27,3 mortes por 100.000, e mais baixa na Australásia, com 6,5 mortes por 100 000.
As infeções respiratórias inferiores foram responsáveis por mais de 1,5 milhões de mortes associadas à resistência em 2019, tornando-se a síndrome infeciosa mais onerosa. Os seis principais patogénios de mortes associadas à resistência antimicrobiana são as seguintes bactérias:
- Escherichia coli,
- Staphylococcus aureus,
- Klebsiella pneumoniae,
- Streptococcus pneumoniae,
- Acinetobacter baumannii.
- Pseudomonas aeruginosa.
Estas seis bactérias foram responsáveis por 929.000 mortes atribuíveis à RAM e 3,57 milhões de mortes associadas à RAM em 2019.
Antibióticos com mais resistências
A combinação de patogénio-droga, Staphylococcus aureus resistente à meticilina, causou mais de 100.000 mortes atribuíveis à resistência antimicrobiana em 2019, enquanto mais seis bactérias causaram, cada uma, 50.000 a 100 000 mortes. Essas seis bactérias extremamente perigosas são as seguintes:
- Bacilo da tubercolose, Mycobacterium tuberculosis, ou bacilo de Koch multiresistente a diversos medicamentos,
- Escherichia coli de terceira geração resistente a cefalosporinas,
- Acinetobacter baumannii resistente a carbapenem,
- Escherichia coli resistente a fluoroquinolonas,
- Klebsiella pneumoniae resistente a carbapenem,
- Klebsiella pneumoniae resistente a cefalosporina de terceira geração.
Resistência bacteriana
A resistência bacteriana a antimicrobianos que ocorre quando mudanças nas bactérias fazem com que os medicamentos usados para tratar infeções se tornem menos eficazes – emergiu como uma das principais ameaças à saúde pública do século XXI. A Revisão sobre Resistência Antimicrobiana, encomendada pelo governo do Reino Unido, argumentou que a RAM poderia matar 10 milhões de pessoas por ano até 2050.
Embora essas previsões tenham sido criticadas por alguns a OMS e vários outros grupos e pesquisadores concordam que a disseminação da RAM é uma questão urgente que requer um plano de ação global e coordenado para abordar este assunto, Informações sobre a magnitude atual da carga da RAM bacteriana, tendências em diferentes partes do mundo e as principais combinações de patógénios-drogas que contribuem para a carga de RAM bacteriana é crucial. Se não for controlada, a disseminação da RAM pode tornar muitos patogénios bacterianos muito mais letais no futuro do que são hoje.
Antibióticos usados pecuária
O uso de antibióticos na criação de animais é um dos temas mais relevantes para combater a resistência bacteriana e proteger a nossa saúde. A tentação para os criadores é imensa pois os animais crescem mais e mais rápido o que melhora muito o lucro das explorações.
No entanto os antibióticos usados na pecuária acabam por deixar vestígios na carne dos animais que depois passam para os humanos quando os consumimos com consequências devastadoras na nossa saúde, muita vezes sem nos apercebermos!
Uma delas é a alteração dramática da nossa microbiota ou flora intestinal com efeitos severos na nossa saúde que só há poucos anos começamos a descobrir mas que se pensa poderem agravar ainda mais os números assustadores de doenças autoimunes e até depressão!
Assim é de vital importância que sejam monitorizados de forma séria o uso de antibióticos dados aos animais, sendo que devem são geralmente proibidos o uso dos seguintes antibióticos:
- Avoparcina,
- Anfenicóis,
- Tetraciclinas,
- Penicilinas,
- Cefalosporinas,
- Quinolonas,
- Sulfonamidas,
- Eritromicina,
- Espiramicina,
- Colistina,
- Tilosina,
- Lincomicina,
- Tiamulina.
Covid-19 faz aumentar resistência bacteriana
A covid-19 é uma doença causada pelo vírus SARS-CoV-2 e portanto, sendo um vírus, os antibióticos não têm qualquer efeito terapêutico sobre ele. No entanto, o aumento no número de doentes internados com Covid-19 aumentou o uso de antibióticos em larga escala por todo o mundo.
Por exemplo a azitromicina 500mg e amoxicilina com ácido clavulânico 875mg/125mg, foram usados de forma alargada em diversos protocolos iniciais de combate à covid-19.
O aumento do uso de antibióticos deve-se principalmente ao tratamento de infeções hospitalares, comuns em doentes internados por períodos de tempo mais prolongados, como em casos graves de Covid-19.
Esta pandemia de SARS-CoV-2 sublinhou a importância de duas estratégias de combate simples mas muito eficazes:
- Lavagem das mãos para conter a disseminação de doenças;
- Vacinas muito úteis, em termos da resistência, porque reduzem a necessidade de antibióticos e previnem a doença grave.
Assim é urgente estimular o desenvolvimento de novas drogas, pois atualmente temos um número muito limitado de antibióticos que apresentam eficácia no combate às bactérias multirresistentes.
Farmacêuticas pouco interessadas
A formulação de um novo antibiótico pode levar de 10 a 15 anos e as bactérias vão continuar a desenvolver mecanismos de resistência, o que torna o desenvolvimento de novos antibióticos um mercado pouco lucrativo para as farmacêuticas.
No meu artigo Top 20 farmacêuticas mais poderosas, pode constatar que apesar de tantos novos medicamentos serem lançados, não está descrito um único antibiótico novo.
As grandes empresas farmacêuticas tomam uma decisão calculada de risco e retorno, a menos que os governos ofereçam financiamento ou forte suporte, elas não investem em soluções terapêuticas pouco rentáveis.
A limitação das drogas disponíveis para o tratamento de infeções bacterianas chama a atenção para o investimento urgente em pesquisa de forma a alargar o estudo de novas formas de eliminação das bactérias.
Para pensar em novas formas de combate, é importante estudar a estrutura da bactéria, conhecer os mecanismos de resistência e investigar novos alvos de antibióticos.
10 medidas contra a resistência bacteriana
Num cenário alarmante de resistência bacteriana no mundo, os seguintes dez pontos de ação podem ajudar nas decisões de governos e autoridades sanitárias:
Referências
- The Lancet. Global burden of bacterial antimicrobial resistance in 2019: a systematic analysis; https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)02724-0/fulltext
- Tackling drug-resistant infections globally: Final report and recommendations
- https://www.cnnbrasil.com.br/saude/entenda-o-que-sao-superbacterias-e-por-que-elas-ameacam-a-saude-publica-global/
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