Kaftrio na Europa ou Trikafta nos EUA, é um medicamento inovador para o tratamento da fibrose quística ou fibrose cística, mas com um preço proibitivo para o comum dos “mortais” sendo fabricado pela farmacêutica Vertex Pharmaceuticals. Segundo a Associação Nacional de Fibrose Quística (ANFQ), nos EUA, se fizermos a conversão para euros, custa 21 mil euros por mês ou seja 252 mil euros por ano, para cada doente! Também a Associação Portuguesa de Fibrose Quística (APFQ), sublinha a importância da aprovação deste medicamento por parte do INFARMED.
Mas será que vale mesmo a pena investir tanto dinheiro neste medicamento? Faço esta pergunta a mim mesmo após a morte trágica, em Portugal, de uma jovem de 24 anos, Constança Braddell, que me emocionou e entristeceu imenso… quatro meses depois de começar a usar o Kaftrio, após uma luta desesperada para conseguir ter acesso ao medicamento que devia ser muito mais barato e acessível aos doentes.
Na altura, em março de 2021, fiz este artigo precisamente depois de saber do caso da Constança, como o meu contributo, de um simples farmacêutico comunitário, que adora investigar e informar sobre doenças e medicamentos que por vezes eu próprio sei muito pouco.
Será que este medicamento, tão caro, melhora de facto a doença mas deixa o sistema imunitário demasiado exposto a outras consequências e infeções oportunistas que podem ser fatais do ponto de vista respiratório, cardíaco ou vascular?
Para os outros doentes a tomar Kaftrio é urgente saber o que se passou com a Constança, do ponto de vista médico, e as autoridades de saúde devem exigir um inquérito rigoroso, imediato e urgente que ajude a salvar outras vidas que podem estar em risco.
Pneumotórax causa morte de Constança
Para já apenas se sabe que o desfecho fatal foi provocado pelo aparecimento de um pneumotórax ou seja a entrada de ar na cavidade pleural (membrana que envolve o pulmão) o que provoca uma pressão excessiva sobre o pulmão que pode originar o seu colapso. Se não houver registo de traumatismo direto o pneumotórax é descrito como espontâneo e pode ser provocado por doenças como asma, enfisema e DPOC.
Para já, não existem indícios de que a toma do medicamento Kaftrio seja responsável por algum efeito adverso que possa ter levado ao surgimento do pneumotórax, sendo sempre uma investigação de causa/efeito de muito elevada complexidade!
Depois de um investimento tão elevado do estado Português neste medicamento, autorizado para cerca de uma dezena de doentes, sublinha-se a importância de manter informada, pelo menos, a comunidade médica/científica, os doentes e os seus familiares acerca da evolução real da doença com a toma do Kaftrio e de eventuais riscos que possam ser conhecidos à medida que vai sendo utilizado em mais doentes.
Fibrose quística o que é?
Qual a causa?
Segundo descrição da Associação Nacional de Fibrose Quística, esta é uma doença cujo nome deriva do aspeto quístico e fibroso do pâncreas, sendo uma doença crónica, hereditária causada por alterações no gene CFTR (Cystic fibrosis transmembrane conductance regulator) que se transmite de pais para filhos. É uma das doenças genéticas mais comuns mas a sua incidência varia com a região do globo.
Gene CFTR com mutação
O regulador de condutância transmembrana da fibrose cística (CFTR) é uma proteína de membrana e canal de cloreto em vertebrados que é codificado pelo gene CFTR.
O gene CFTR codifica uma proteína do canal de iões da classe transportadora ABC que conduz iões cloreto através das membranas das células epiteliais. As mutações do gene CFTR que afetam a função do canal de iões cloreto levam à desregulação do transporte do fluido epitelial no pulmão, pâncreas e outros órgãos, resultando em fibrose cística.
Transporte de Cloreto Defeituoso – A diminuição da função da proteína CFTR nas células epiteliais causa diminuição do movimento do cloreto no lúmen das vias aéreas com um aumento correspondente no movimento do sódio para fora do lúmen das vias aéreas. Isso leva à diminuição da água no lúmen das vias aéreas e ao espessamento do muco da superfície das vias aéreas.
Prevalência
Os indivíduos de origem caucasiana (Indo-Europeia) são os mais atingidos e a doença é menos frequente entre as populações africana e oriental. Na maioria dos países europeus, calcula-se que em média 1 em cada 2.000-6.000 recém-nascidos tenham Fibrose Quística. Em Portugal estima-se que nasçam por ano cerca de 30-40 crianças com a doença. Estima-se que a nível mundial existam 7 milhões de pessoas portadoras da anomalia genética da FQ e cerca de 75.000 com a doença.
Glândulas exócrinas doentes
A Fibrose Quística surge por mau funcionamento das glândulas exócrinas do organismo que são as de secreção externa. É nos pulmões e no intestino que a doença se manifesta com mais frequência, interferindo com a respiração e a digestão dos alimentos. As glândulas sudoríparas também são afetadas produzindo um suor mais salgado.
A Fibrose Quística também é conhecida por Mucoviscidose, nome dado em França, e por Cystic Fibrosis (CF). No Brasil tem o nome de Fibrose Cística (FC).
Sintomas e complicações
Na fibrose quística as complicações incluem muco espesso nos pulmões com infeções respiratórias frequentes e insuficiência pancreática, causando desnutrição e diabetes. Essas condições levam à deficiência crónica e redução da expectativa de vida.
Em pacientes do sexo masculino, a obstrução progressiva e a destruição dos canais deferentes em desenvolvimento (cordão espermático) e do epidídimo parecem resultar de secreções intraluminais anormais, causando ausência congénita dos canais deferentes e infertilidade masculina. Resumindo o mau funcionamento da proteína CFTR em vários tecidos provoca sintomas em vários orgãos, tais como:
- Vias respiratórias – são os mais graves e frequentes. As secreções brônquicas são formadas por muco muito espesso, difícil de eliminar e causam infeções respiratórias crónicas tais como bronquiectasias, bronquioloectasias;
- Tubo digestivo – o pâncreas não segrega as enzimas digestivas em quantidade suficiente para a digestão dos alimentos (insuficiência pancreática exócrina), levando a dificuldade em ganhar peso e estatura (e fezes abundantes, gordurosas e de cheiro fétido). Assim, apesar de terem apetite, estes pacientes são habitualmente mal nutridos;
- Glândulas sudoríparas – não ocorre a absorção de cloreto e sódio, pelo que o suor tem excesso de sal. Este sintoma é utilizado no teste de suor, o mais comum no diagnóstico da Fibrose Quística. Em caso de aumento de sudação (por exemplo pelo calor) pode por vezes surgir desidratação;
- Disfunção reprodutora.
Efeitos da doença
Em algumas glândulas, como o pâncreas e as glândulas dos intestinos, as secreções são tão espessas ou sólidas que obstruem completamente a glândula. As glândulas que produzem muco nos pulmões criam secreções anormais obstruindo as vias respiratórias, permitindo a multiplicação de bactérias.
As glândulas sudoríparas, as glândulas parótidas e as pequenas glândulas salivares segregam líquidos cujo conteúdo em sal é superior ao normal.
A glândula sudorípara normal produz um líquido isotónico graças ao conteúdo em cloro e sódio. Quando a CFTR perde a sua função, o cloro é incapaz de ir para o interior da célula, por sua vez o sódio, dependente do cloro, também não entra produzindo assim, um suor “salgado”. No entanto, não ocorre obstrução nem variações patológicas maiores das glândulas.
Nos canais pancreáticos torna-se ineficaz a libertação de aniões (incluindo cloreto e bicarbonato) e fluidos, efectuando-se a acumulação de muco e obstrução das glândulas exócrinas e, por último, a lesão do órgão. Um mecanismo idêntico explica as transformações a nível intestinal, hepático e dos ductos deferentes.
No pulmão estas variações são reforçadas pela manifestação muito prematura de glândulas submucosas dilatadas, as quais constituem o local de maior expressão da CFTR no organismo. Outros fatores possíveis que contribuirão para maior viscosidade do muco são o aumento da sulfatação das mucinas e os produtos de degradação dos neutrófilos (moléculas de ADN e filamentos de actina), bem como a perda de células cilíadas secundária à inflamação crónica e infeção.
A constituição e as propriedades mecânicas anormais das secreções não explicam a tendência à colonização com um número limitado de bactérias, em particular a Pseudomonas aeruginosa. Muitos sintomas são tardios, contudo o diagnóstico pode ser realizado precocemente.
Gravidade e perigos
Foi descrita pela primeira vez em 1930 como uma doença letal na idade infantil. Atualmente, graças ao diagnóstico precoce, à criação de Centros Especializados e novos tratamentos, o panorama mudou e a sobreviva média situa-se entre os 35-40 anos de idade.
As formas de apresentação, a gravidade e a evolução clínica da doença são variáveis e são em grande parte dependentes das mutações no gene CFTR. São, porém, os problemas pulmonares a grande causa de morbilidade e mortalidade da doença.
Os progressos na investigação, nomeadamente nos medicamentos moduladores da CFTR que corrigem a doença na sua raiz (ou seja, a nível da proteína CFTR que está alterada) poderão alterar a progressão da doença de forma muito significativa.
História da Fibrose Quística
1938 – A fibrose quística foi descrita pela primeira vez de modo compreensível em 1938 por Andersen, como uma doença que se caracterizava por alterações no pâncreas e infeções nos pulmões. Baseando-se nas características observadas no pâncreas (aspecto quístico e fibroso), foi também Andersen quem primeiro estabeleceu o termo de fibrose quística – “cystic fibrosis of the pancreas” – para a doença.
1943 – Farber, por observar que os ductos dos órgãos afetados na fibrose quística acabavam por ficar obstruídos pelas secreções anormalmente espessas e com grandes probabilidades de serem colonizadas por bactérias, particularmente nas vias aéreas respiratórias, utilizou o termo “mucoviscidose” para se referir à doença.
1946 – estudos realizados em doentes permitiram que se começasse a ter algum conhecimento sobre as bases genéticas da doença. Depois de examinarem o padrão hereditário nas famílias, os investigadores concluíram que a fibrose quística era uma doença recessiva, provavelmente causada pela mutação de um único gene (monogénica).
Kaftrio o que é?
Indicação terapêutica
Kaftrio é um medicamento utilizado no tratamento de doentes com idade igual ou superior a 12 anos com fibrose quística, uma doença hereditária que tem efeitos graves nos pulmões, no sistema digestivo e noutros órgãos.
Tal como já atrás referido, a fibrose quística pode ser causada por várias mutações (alterações) no gene de uma proteína denominada «regulador da condutância transmembranar da fibrose quística» (CFTR). O ser humano possui duas cópias deste gene, uma herdada de cada progenitor e a doença só ocorre quando existe uma mutação nas duas cópias.
Kaftrio é utilizado em doentes cuja fibrose quística se deve à mutação F508del herdada de um ou ambos os progenitores. Caso tenham herdado esta mutação de apenas um dos progenitores, devem também ter outra mutação denominada «mutação mínima da função» do outro progenitor
A fibrose quística é uma doença rara, e Kaftrio foi designado medicamento órfão (medicamento utilizado em doenças raras) a 14 de dezembro de 2018. Kaftrio contém as seguintes três substâncias ativas:
- Ivacaftor,
- Tezacaftor,
- Elexacaftor.
Posologia do Kaftrio
Como se utiliza?
O medicamento só pode ser obtido mediante receita médica. Kaftrio só deve ser prescrito por um profissional de saúde com experiência no tratamento da fibrose quística.
Encontra-se disponível na forma de comprimidos. Cada comprimido contém:
- 75 mg de ivacaftor,
- 50 mg de tezacaftor,
- 100 mg de elexacaftor.
Kaftrio deve ser tomado em associação com outro medicamento contendo ivacaftor isoladamente. A dose diária recomendada é a seguinte:
- Dois comprimidos de Kaftrio de manhã com alimentos contendo gordura
- Um comprimido de ivacaftor (150 mg) à noite, cerca de 12 horas mais tarde.
Poderá ser necessário reduzir as doses de Kaftrio e ivacaftor se o doente estiver a tomar um tipo de medicamento denominado «inibidor moderado ou forte da CYP3A», tais como certos antibióticos ou medicamentos para infeções fúngicas. O médico poderá ter de ajustar a dose em doentes com função hepática reduzida.
Mecanismo de ação
Como funciona o Kaftrio?
As mutações reduzem o número de proteínas CFTR na superfície celular ou afetam o modo de funcionamento das proteínas, resultando em secreções das células que fazem com que o muco e os fluidos digestivos sejam demasiado espessos, o que provoca bloqueios, inflamação, aumento do risco de infeções pulmonares e problemas de digestão e de crescimento.
Duas das substâncias ativas de Kaftrio, elexacaftor e tezacaftor, aumentam o número de proteínas CFTR na superfície celular, e a outra, ivacaftor, melhora a atividade da proteína CFTR defeituosa. Estas ações tornam o muco nos pulmões e os sucos digestivos menos espessos, ajudando, assim, a aliviar os sintomas da doença.
Benefícios demonstrados
O que provaram os estudos?
Em dois estudos principais realizados em doentes com fibrose quística com idade igual ou superior a 12 anos, Kaftrio, tomado em associação com ivacaftor, demonstrou ser eficaz na melhoria da função pulmonar. O principal parâmetro de eficácia foi a ppFEV1, ou seja, a quantidade máxima de ar que uma pessoa é capaz de expirar num segundo, em comparação com os valores médios de uma pessoa com características semelhantes (tais como idade, altura e sexo). Nestes estudos, os doentes
começaram com valores de 60 a 62 % dos valores médios de uma pessoa saudável.
O primeiro estudo incluiu 403 doentes que tinham uma mutação F508del e uma mutação MF. Após 24 semanas de tratamento, os doentes tratados com Kaftrio e ivacaftor apresentaram um aumento médio no ppFEV1 de 13,9% em comparação com uma redução de 0,4% nos doentes que receberam o placebo.
No segundo estudo que incluiu 707 doentes com uma mutação F508del de ambos os progenitores, os doentes que tomaram Kaftrio com ivacaftor apresentaram um aumento médio no ppFEV1 de 10% em comparação com um aumento de 0,4% nos doentes que tomaram uma associação de ivacaftor e tezacaftor isoladamente.
Riscos associados
Efeitos secundários mais frequentes
Os efeitos secundários mais frequentes associados a Kaftrio (que podem afetar mais de 1 em cada 10 pessoas) são os seguintes:
- Dor de cabeça (17,3%),
- Diarreia (12,9%),
- Infeções do trato respiratório superior, tais como, infeções do nariz e da garganta (11,9%),
- Podem ocorrer erupções cutâneas que, por vezes, são graves (1,5%).
No resumo das características do medicamento (RCM) do Kaftrio, aprovado pela agência europeia do medicamento (EMA), estão descritos diversos efeitos colaterais muito comuns (≥1/10) e comuns (≥1/100 a <1/10) que podem ser graves e afetar quase todos os sistemas e órgãos importantes do nosso corpo!
De seguida apresento imagem da tabela das reações adversas descritas no RCM do Kaftrio:
Se desejar conhecer todos os detalhes descrevo de seguida link para o resumo das características do medicamento aprovado pela Agência Europeia do medicamento (EMA).
Agência Europeia do Medicamento (EMA)
Porque está Kaftrio autorizado na UE pela EMA?
Kaftrio é um tratamento eficaz para doentes com fibrose quística que têm duas mutações F508del ou uma mutação F508del e uma mutação MF. Ambos são grupos com uma elevada necessidade médica por satisfazer. Os doentes que apresentam uma mutação F508del e outras mutações não foram abrangidos pelos estudos e, apesar de a empresa ter apresentado alguns dados sobre a utilização nesses doentes, considerou-se necessário fornecer dados adicionais que suportassem a autorização nestes grupos.
Em termos de segurança, Kaftrio foi bem tolerado. Por conseguinte, a Agência Europeia de Medicamentos concluiu que os benefícios de Kaftrio são superiores aos seus riscos e o medicamento pode ser autorizado para utilização na UE.
Segurança e eficácia
Medidas para utilização segura e eficaz de Kaftrio
A empresa responsável pela comercialização de Kaftrio realizará um estudo sobre a segurança a longo prazo de Kaftrio, incluindo em mulheres grávidas. No Resumo das Características do Medicamento e no Folheto Informativo foram igualmente incluídas recomendações e precauções a observar pelos profissionais de saúde e pelos doentes para a utilização segura e eficaz de Kaftrio.
Tal como para todos os medicamentos, os dados sobre a utilização de Kaftrio são continuamente monitorizados. Os efeitos secundários comunicados com Kaftrio são cuidadosamente avaliados e são
tomadas quaisquer ações necessárias para proteger os doentes.
Referências
- Associação Portuguesa de Fibrose Quística (APFQ)
- Associação Nacional de Fibrose Quística (ANFQ)
- Agência Europeia do Medicamento (EMA)
- https://www.ema.europa.eu/en/medicines/human/EPAR/kaftrio
- Vertex Pharmaceuticals
- https://www.jn.pt/nacional/morreu-constanca-braddell-a-jovem-que-uniu–13928428.html
- Manuais MSD https://www.msdmanuals.com/pt-pt/casa/dist%C3%BArbios-pulmonares-e-das-vias-respirat%C3%B3rias/doen%C3%A7as-da-pleura-e-do-mediastino/pneumot%C3%B3rax
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